quarta-feira, 27 de maio de 2009

Manifestações do Espírito



Daniel Pinheiro

Psicólogo e Terapeuta Holístico


Ao adentrarmos no corpo físico no momento de nossa concepção, manifestamos toda a tendência expansiva do Universo. Estar manifesto é estar presente, é editar uma única e singular possibilidade de realizar a obra da Criação manifesta. A partir dessa concepção podemos inferir que a saúde é uma questão de presença, ou seja, a saúde depende da qualidade da presença, da nossa capacidade de ser e estar, e essa qualidade está intrinsecamente vinculada à saúde do espírito. Chamo de espírito àquela qualidade fundamental que nos faz sermos diferentes uns dos outros, termos consciência de nossa própria individualidade, e mais que isso, àquilo que permite a integração corpo e alma (mente) através de fluxos informacionais, de um intercâmbio íntimo entre os diversos órgãos e sistemas dos organismos viventes. Dessa forma o espírito está ou não presente na observação da qualidade da postura (verticalidade), do tônus muscular, da cor da pele, do brilho dos olhos, da voz, dos cabelos etc.

Todas essas características denotam a qualidade das comunicações que estão presentes nos organismos. A falta de comunicação gera ruídos, turbidez e bloqueios que de um modo e de ou de outro redundam nas conhecidas afecções do corpo e da alma. Vale dizer aqui, que para as antigas Tradições, não existe doença e sim doentes e que, em verdade, as doenças não existem, mas sim editamos vezes e mais vezes um único conflito base, que chega até nós através dos pacotes de informações doados por nossos pais ambos representantes diretos de dois clãs (famílias) onde estes conflitos já se fazem presentes desde muito. Então, podemos ainda ir mais longe e dizer que a humanidade sofre de um único mal, que pode ser interpretado de diferentes maneiras de acordo com os indivíduos que dele padecem.

Essa concepção de saúde e doença vem considerar os organismos vivos como um todo integrado, inclusive não excluindo as escolhas que o indivíduo faz no decorrer de sua vida como que se inscrevem nos fatores: ecológicos, comportamentais, relacionais, laborais, de moradia, sociais e etc., não se excluindo os aparentes acidentes que nos acometem no dia a dia (por exemplo, uma queda) e ainda os ataques de patógenos externos (por exemplo, uma gripe). Isso tudo influencia nas vivências do organismo, e tais vivências (fator psicogênico) podem ser positivas ou negativas para o funcionamento bioenergético do todo orgânico.

Ao visualizar a modus vivendi dos seres humanos na atualidade afirmo que as vivências prazerosas estão inversamente proporcionais ao desenvolvimento da civilização. O que é um contra censo, visto que com o desenvolvimento o ser humano estaria mais apto a lidar com a realidade, mais rápido e melhor! Com o desenvolvimento, principalmente o tecnológico, a humanidade deveria utilizar o valioso tempo restante para o seu crescimento, editando vivências prazerosas, garantindo maior autoconhecimento, maior contato com o corpo, com o espírito e com a Natureza. Entretanto, quanto mais trilhamos através da sede civilizatória e civilizadora, cada vez mais nos esquecemos da criança interior, dos animais de poder, do curandeiro, do guerreiro, do líder, da persona, da sombra, do animus/anima e de todos os outros arquétipos que compõem a nossa psique. Cada vez mais temos menos tempo para revisitá-los e reverenciá-los, pois cada vez temos menos tempo para o que realmente importa.

Encontrar o brilho do espírito é a meta, percorrer sendas estranhas ao homem civilizado é o desafio, integrar aspectos opostos é o enigma a ser solucionado, pois no fim todos poderemos ser devorados pela esfinge e perecer diante da tarefa divina que é imposta pela vida.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Considerações Sobre os Trabalhos com Ayahuasca



Daniel Pinheiro
Psicólogo e Terapeuta Holístico

Com um coração intrépido,

um rato levanta um elefante.

(Provérbio Tibetano)

Com este texto, que são simples visões de alguém que ainda é um neófito nos caminhos do xamanismo, gostaria de dar lugar a sentimentos e pensamentos que brotaram em mim a partir das experiências com a bebida sagrada da ayahuasca. Partirei de uma premissa que faz parte da minha experiência como psicólogo no atendimento a comunidades e terapeuta holístico especializado em acupuntura. Através de observações empíricas pude constatar que as afecções das quais padecem o corpo são oriundas, ou melhor, se definem primeiramente como afecções do espírito e da alma (não estou colocando aqui como sinônimos) e estão ligadas intimamente a ordem do desejo.

O saber milenar de muitas culturas ancestrais define a importância dos astros (sidus singular ou sidera plural que denota um conjunto de estrelas/constelações) na cadeia do destino de cada indivíduo, já que no momento em que o espírito entra na brutalidade da matéria, os intermediários siderais eternos e etéreos, exalam diáfanos envoltórios que protegem a alma, conferindo-lhe um corpo astral. Donde considerare (considerar) é examinar com cuidado, respeito e veneração, fazer consulta cuidadosa aos astros (astral). Em contraponto, a palavra desejo, que deriva do latim desiderare, é se distanciar ou abandonar a consulta aos céus (aos astros), daí desiderium ser ação de tomar o destino nas próprias mãos, ou seja, o indivíduo que por vontade consciente nascida de sua própria deliberação cai na roda da fortuna incerta, privado de saber seu próprio destino, estando meio termo entre a decisão ou poder pessoal e a carência, já que se encontra privado do auxílio das alturas.

Considerar, então, paradoxalmente ao desejo, para a Tradição, é a possibilidade de entendimento da Realidade Última, ou da Verdade Transcendente, é a possibilidade do indivíduo transcender de si, extrapolar a pequenez egóica de ato e potência e compartilhar com a Presença Divina fragmentos de sua Onipotência, Onisciência e Onipresença. Neste ponto, gostaria de inserir as experiências de ampliação de consciência feitas por meio da ayahuasca.

A ayahuasca tem propriedades que promovem a alteração e ampliação dos estados da consciência e permite ao indivíduo que faz seu uso ritualístico um tipo experiência religiosa sui generis. O mundo em sua ilusão e transitoriedade é descortinado para mostrar caminhos e possibilidades, diante do desespero, através do vislumbre do senso de pertencimento e conexão com tudo o mais no Universo e da compreensão de que a Luz Cósmica é comum para todos os seres, considerações que permeiam a alma do caminhante durante um estado de força e paz espiritual.

Entretanto, o espírito insuflado pelas paixões perde a medida das coisas (metrón) e como Ícaro, de asas derretidas, caí em um oceano pulsional de excessos, vícios, neuroses, perversões e psicoses. É preciso antes de tudo silenciar os ruídos intermitentes das vivências egóicas, é preciso educar o ego desejante e desejoso para transformar impulsos irrefletidos em tendência racional refletida, ou melhor, lançar luz a lugares obscuros da personalidade e buscar de lá suas sombras, integrar as partes fragmentadas do Si Mesmo dilapidado pelos hábitos de vida, pela convivência em família e pela imersão na cultura.

Angelis Arrien, no Caminho Quádruplo, aponta alguns interessantes conceitos de cura:

1. A cura é a jornada de toda a vida no sentido da inteireza;

2. Curar é lembrar o que foi esquecido sobre vínculo, unidade e interdependência, entre tudo o que é vivente e não-vivente;

3. Curar é abrir os braços ao que é mais temido;

4. Curar é abrir o que estava fechado, suavizar o que se endureceu em forma de obstrução;

5. Curar é penetrar no momento transcendente, atemporal, em que se experimenta o divino;

6. Curar é criatividade, paixão e amor;

7. Curar é buscar e expressar o ser em sua plenitude, sua luz e sua sombra, o masculino e o feminino;

8. Curar é aprender a confiar na vida.

Assim sendo, a ayahuasca é um veículo que tenta proporcionar ao indivíduo uma experiência total, um reencontro consigo mesmo, reeditando vivências que proporcionam o passear pela curar. A figura do Xamã, terapeuta ou médico da alma, nesse sentido torna-se muito importante, pois este facilita o processo de autoconhecimento (ou auto-reconhecimento) ao sinalizar os caminhos. O trabalho é individual, mas o aprendizado é coletivo, na medida em que o grupo, ou melhor, tribo compartilhando de suas experiências, permite o crescimento transpessoal.

Com esses escritos quero apenas divulgar um trabalho que é tão importante para a humanidade que é a redescoberta do amor e a fraternidade entre irmãos.

Abraços a todos!

domingo, 17 de maio de 2009

SABEDORIA INDÍGENA



O Silêncio

Nós os índios, conhecemos o silêncio. Não temos medo dele.
Na verdade, para nós ele é mais poderoso do que as palavras.
Nossos ancestrais foram educados nas maneiras do silêncio e eles
nos transmitiram esse conhecimento.
"Observa, escuta, e logo atua", nos diziam.
Esta é a maneira correta de viver.
Observa os animais para ver como cuidam se seus filhotes.
Observa os anciões para ver como se comportam.
Observa o homem branco para ver o que querem.
Sempre observa primeiro, com o coração e a mente quietos,
e então aprenderás.
Quanto tiveres observado o suficiente, então poderás atuar.
Com vocês, brancos, é o contrário. Vocês aprendem falando.
Dão prêmios às crianças que falam mais na escola.
Em suas festas, todos tratam de falar.
No trabalho estão sempre tendo reuniões
nas quais todos interrompem a todos,
e todos falam cinco, dez, cem vezes.
E chamam isso de "resolver um problema".
Quando estão numa habitação e há silêncio, ficam nervosos.
Precisam preencher o espaço com sons.
Então, falam compulsivamente, mesmo antes de saber o que vão dizer.
Vocês gostam de discutir.
Nem sequer permitem que o outro termine uma frase.
Sempre interrompem.
Para nós isso é muito desrespeitoso e muito estúpido, inclusive.
Se começas a falar, eu não vou te interromper.
Te escutarei.
Talvez deixe de escutá-lo se não gostar do que estás dizendo.
Mas não vou interromper-te.
Quando terminares, tomarei minha decisão sobre o que disseste,
mas não te direi se não estou de acordo, a menos que seja importante.
Do contrário, simplesmente ficarei calado e me afastarei.
Terás dito o que preciso saber.
Não há mais nada a dizer.
Mas isso não é suficiente para a maioria de vocês.
Deveríamos pensar nas suas palavras como se fossem sementes.
Deveriam plantá-las, e permiti-las crescer em silêncio.
Nossos ancestrais nos ensinaram que a terra está sempre nos falando,
e que devemos ficar em silêncio para escutá-la.
Existem muitas vozes além das nossas.
Muitas vozes.
Só vamos escutá-las em silêncio.

"Neither Wolf nor Dog. On Forgotten Roads with an Indian Elder" - Kent Nerburn


"AVÔ GRANDE ESPÍRITO... TU DISPUSESTE AS FORÇAS DOS QUATRO QUADRANTES DA TERRA PARA QUE SE CRUZASSEM. TU ME FIZESTE TRILHAR A BOA ESTRADA, E A ESTRADA DAS DIFICULDADES, E ONDE ELAS SE CRUZAM, SANTO É O LUGAR. DIA VAI, DIA VEM, PARA TODO O SEMPRE ÉS TU A VIDA DAS COISAS."

Alce Negro, Sioux Oglala (Nerburn, Native American wisdom)
Extraído do Livro "O Caminho Quádruplo"
Arrien, Angeles, Ed Ágora,1997
A Ecologia do Ser
Vania de Lara Crelier
O Homem habita este planeta há séculos, assumindo posturas de omissão, alienação e até mesmo de irresponsabilidade. Dissociado da sua essência, numa visão mecanicista, investe em avanços tecnológicos e materiais, preocupando-se pouco ou quase nada com valores emocionais e espirituais, tais como igualdade, fraternidade, amor e paz.
Dissociado de si mesmo, não se percebe como agente transformador e modificador.
Coloca-se como vítima ou como aquele que, nas leis do patriarcado - a lei do mais forte -, abusa do poder.

Criou-se assim o caos.
O Xamã, assumindo um trabalho importante de cura planetária, defronta-se com a necessidade de se auto-curar. Engajado socialmente em lutas ecológicas de preservação de ambiente (rios, florestas, ar, terra, cuidados com as espécies animais e vegetais), o estudioso do Xamanismo percebe a importância do Homem integrado ao todo, agente construtor e reformador do caos que ele mesmo criou.
Organizador do caos como tarefa de vida, ele necessita trazer de volta toda sua força criativa. Trabalhando com os quatro elementos, o Xamã sabe da necessidade de lidar bem com as emoções, com o fogo sagrado da criatividade, com a força da espiritualidade, com a realização e materialização de suas obras. Assim, com os quatro elementos: fogo, água, ar e terra - e juntando mais um, o éter (que é a energia vital), o Xamã participa da vida em constante comunhão com a natureza e com o Sagrado.

Conhecedor da importância de seu poder em transitar livremente entre os mundos, real e subjetivo, sendo um canal entre o céu e a terra, ele sabe do seu papel no mundo como agente transformador e canalizador do Divino.

Através do auto-conhecimento, ele se transforma e transforma o mundo ao seu redor. Para isso usa técnicas como meditação, respiração, exercícios de dissolução das couraças que nos prendem a padrões estereotipados de comportamento, viagens em estado alterado de consciência (E.X.C) com a finalidade de ampliar seus conhecimentos, efetuar curas, resgate de alma, etc.

À frente do seu tempo, ele não tem tempo a perder. Conectado com os sentimentos do coração (com o caminho do coração, como ensina D. Juan para Castañeda), ele assume a tarefa de domar seu ego até conseguir transcendê-lo.
Lembremos que o Ego comanda a personalidade (nome que vem de persona - máscara em grego).
Trabalha com a aceitação (de si próprio e do outro), com o desapego, com a entrega e com a impecabilidade do guerreiro.
Compromete-se com a vida e sabe que isto significa estar presente a cada momento, a cada situação, estar inteiro na sua verdade e na sua integridade.

Compromete-se com a essência e com as qualidades Divinas do Amor, Alegria, Prazer, Sabedoria, Criatividade, Luz, Prosperidade, Abundância e Cura.
Compromete-se com o Mundo Profundo, percorre os Infernos do seu próprio Ser em busca da iluminação, de trazer a Luz e o Amor para si próprio e para o Mundo.


Vânia de Lara Crelier
Médica Psiquiatra – Xamã
Didata da Paz Géia

Fonte: http://www.pazgeia.org.br/arquivos/textos/ecologia.htm

O QUE É XAMANISMO?
Carminha Levy

" ... é um processo de auto-conhecimento que se dá no inconsciente profundo, na mesma região em que emergem as forças criativas e curativas do Inconsciente Coletivo, onde repousam os arquétipos..."
Carminha Levy

Na aurora da Humanidade, quando reinava o Caos Primordial e o Sono da Inconsciência, os Xamãs - "homens e mulheres que possuíam o dom de sair fora do corpo" ( Up From Edem - Ken Wilber ) - visitavam o mundo dos Arquétipos e entravam em contato com o Arquétipo do Divino.

Tocados pela força da Revelação, esses Xamãs iniciaram o processo de "despertar" a Humanidade. Por esse feito, foram considerados "Heróis da Consciência e Iniciadores da Civilização" (História da Origem da Consciência - Erick Newmam).
Hoje novamente vivemos o Caos e dormimos o Sono da Inconsciência, situação essa que faz ressurgir o arquétipo do Xamã. Surge assim, no século passado, nos anos 60, um movimento mundial de retorno ao Xamanismo, inspirado pela pesquisa de Mircea Eliade (Xamanismo e Técnicas Arcaicas de Êxtase).

Pioneiros como Carlos Castanheda e Michael Harner, entre outros, ousam desafiar a comunidade científica com o estudo e prática desta arcaica e primitiva tradição.
A partir de então, lenta e progressivamente o Xamanismo vem ganhando espaço em todas as camadas sociais e culturais e retomando a sua primitiva missão de despertar o Ser Humano através do Caminho do Coração. Agora são os Neo-Xamãs que vêm unir a sabedoria ancestral às conquistas científicas e tecnológicas da modernidade.

Fonte: http://www.pazgeia.org.br/arquivos/universo_xamanico.htm


quarta-feira, 13 de maio de 2009

O Daime, Caetano e Gil



Juarez Duarte Bomfim - L.E. Pomar Visual Blog

Por Juarez Duarte Bomfim

O jornalista Carlos Marques, atualmente consultor da Unesco e residente em Paris, estava com 20 anos de idade quando a direção da revista Manchete decidiu destacá-lo, na companhia de um fotógrafo, para uma reportagem sobre a distante Rio Branco, capital do Acre, no ano de 1969. [1]
Entre os vários entrevistados, Marques conversou com o bispo italiano Giocondo Maria Grotti, que dois anos depois (1971) morreria durante acidente aéreo no município de Sena Madureira.
Ao ser perguntado sobre os problemas que enfrentava na região, o bispo reclamou da Doutrina do Santo Daime, fundada pelo negro maranhense Raimundo Irineu Serra.
Marques decidiu conhecer o Mestre Irineu Serra, que trabalhava no roçado de sua propriedade quando o jornalista foi visitá-lo.
- Aquele encontro foi a experiência mais marcante de minha vida. O mestre Raimundo disse que sabia que eu chegaria e estava me esperando. Disse o meu nome, que eu havia sido libertado recentemente da prisão e que eu tinha uma cicatriz na perna.
Marques contou, ainda, que passou três dias no Alto Santo e tomou Daime, mas não revela detalhes de sua experiência.
- Ele me disse que um dia eu voltaria ao Acre, mas jamais acreditei nessa possibilidade.
Quando se despediu do Mestre Irineu Serra, inusitadamente o mesmo lhe ofereceu uma garrafa de Daime com a recomendação para ele tomar o seu conteúdo com amigos sensíveis. [2]
De volta ao Rio de Janeiro, Carlos Marques entrega a garrafa e o seu conteúdo ao compositor tropicalista Gilberto Gil, a descrevendo como “uma beberagem indígena sagrada que produzia visões deslumbrantes e estados de alma elevadíssimos”. [3]
Naquele mesmo dia Gilberto Gil tomou uma dose da bebida, e logo após foi para o Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, pegar a ponte aérea para São Paulo.
Já no saguão do Aeroporto de Congonhas, São Paulo, onde ocorria a inauguração de uma exposição militar, da FAB - Força Aérea Brasileira - o efeito do Daime começou a se manifestar, e Gil “captara conteúdos indescritíveis na presença dos militares”. [4]
Era época de Ditadura Militar e a classe artística e intelectual brasileira estava sendo duramente perseguida, os próprios artistas baianos Gil e Caetano seriam logo após presos e “convidados” a se retirarem do Brasil.
Sob efeito do Daime Gilberto Gil sentiu glauberianamente “como se tivesse entendido o sentido último do momento de nosso sentido como povo, sob a opressão autoritária”.. . e mesmo sob o medo que então os militares provocavam.. . sentia que podia “amar, acima do temor e de suas convicções ou inclinações políticas, o mundo em suas manifestações todas, inclusive os militares opressores”. [5]
A mensagem crística chegava assim ao coração do artista, apesar de todas as perseguições e temores: “Amai a vossos inimigos”.[6] Era o Daime operando…
Depois dessa experiência solitária no vôo Rio-São Paulo, Gilberto Gil reúne um grupo de amigos no apartamento do compositor Caetano Veloso e propõe que todos fizessem uma “viagem” em conjunto. Seguindo a recomendação do Carlos Marques, Gil serve a cada um dos presentes pouco mais de meio copo.[7]
Conta Caetano: ” a beberagem espessa e amarelada tinha gosto de vômito, mas não me causou náuseas”.[8] A partir daí, a verve inspirada do poeta baiano transmite um interessantíssimo depoimento das visões e percepções do que via e sentia, da vida que percebia nos objetos inanimados, “a história de cada pedaço de matéria” de um prosaico carpete de náilon do seu apartamento, por exemplo…
Ao som do rock progressivo do Pink Floyd, no limite exíguo do vigésimo andar de um edifício paulistano, dá-se o experimento:
“Sandra (mulher de Gil) entrava e saia do quarto do som com os olhos duros e o rosto sério. Ela estava assustada. Eu a achava parecida com um índio. Gil estava com lágrimas nos olhos e falava alguma coisa sobre morrer, ter morrido, não sei. Dedé (mulher de Caetano) circulava pela sala dizendo que se via a si mesma em outro lugar. Eu fiquei muito feliz de observar que as pessoas eram tão nitidamente elas mesmas… Uns pontos de luz coloridos surgiram no espaço ilimitado da escuridão… Formas circulares eram compostas por lindos pontos luminosos dançantes. Aos poucos eu sabia quem era cada um desses pontos luminosos. E em breve eles de fato se mostravam como seres humanos. Eram muitos, de ambos os sexos, todos estavam nus e tinham aspecto de indianos. Essas pessoas dançavam em círculos de desenhos complicados, mas eu não só podia entender todas as sutilezas dessa complicação como tinha tranqüila capacidade de concentração para saber sobre cada uma das pessoas tanto quanto eu sei de mim mesmo ou de meus próximos mais amados”.[9]
É dito que da(s) experiência(s) com o Daime, particularmente experiências pico como esta, de Gilberto Gil (”Gil… falava alguma coisa sobre morrer, ter morrido”..) surgiram belíssimas canções do seu cancioneiro, tal como “Se eu quiser falar com Deus”.
“Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada , nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar “[10]
(Ouçam Se Eu Quiser Falar Com Deus - Elis Regina - Capela Disponível em http://br.youtube.com/watch?v=tWuQc7W0O-A)
Em êxtase Caetano mirava os seus “anjos indianos” nessa “experiência celestial”.
“Eu alternava - com abrir e fechar os olhos - observação do mundo exterior e vivência desse mundo de imagens que se tornava cada vez mais denso… aos poucos eu reconhecia que os seres vistos com os olhos fechados eram indubitavelmente mais reais do que meus amigos presentes no quarto do som ou as paredes desse quarto e os tapetes”.[11]
Com a consciência expandida pela miração, Caetano conhece outra concepção de espaço, diferente da corriqueira e “precária convencionalidade” ; o “tempo era igualmente criticado por essa instância mais alta em minha consciência lúcida: com benevolência e sem nenhuma angústia, eu sabia que o fato de estar vivendo aquele momento era irrelevante diante da evidência de que eu já tinha - ou teria - nascido, vivido e morrido - e também jamais existido -, embora a percepção do meu eu naquela situação fosse uma ilusão inevitável”.[12]
O artista santamarense continua inspiradamente a narrar a sua experiência - da qual recomendamos a leitura atenta, pois não é possível transcrevê-la toda aqui - e quem discursa é também o antigo estudante de filosofia da Universidade da Bahia: diante da representação da “idéia de Deus” diz não saber se teve “o súbito retraimento de quem aprendeu que a face do Criador não pode ser contemplada. ..” Surge então a dúvida no coração de quem vivenciava um extraordinário momento extático, e ao ser levado por Dedé para se olhar no espelho do banheiro, ver seu rosto “de sempre” após toda essa experiência… passou então a ter a certeza “de que estava louco”. Porém “esse eu que tinha tal certeza era como que indestrutível: esse não fica louco, não dorme, não morre, não se distrai”…
Quão bela experiência.. . vemos que foi revelada a Luz do Daime a este sensível poeta e compositor baiano e o merecimento de se ver como espírito, a vislumbrar a sua essência - que é Divina, como a de todos nós.
Inebriado do divino e maravilhoso que é Deus, brincando com as dúvidas filosóficas a la Rogério Duarte, futuro devoto hare krishna: “Eu não creio em Deus, mas eu vi!” ou ‘É óbvio que Deus não existe, mas a inexistência de Deus é apenas um dos aspectos de sua existência”… parodiando Nietzsche Caetano vai bradar para todo o Brasil: “Deus está solto!” sob as vaias da apresentação festivalesca do seu “É proibido proibir”.
Dessa vivência transcendental, Caetano reflete assim: “… por mais de um mês eu me senti vivendo como que um palmo acima de tudo o que existe. E por mais de um ano certos resquícios específicos se mantiveram. Na verdade, algo de essencial mudou em mim a partir daquela noite”.
“Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar
E o coração que é soberano e que é senhor
Não cabe na escravidão, não cabe no seu não
Não cabe em si de tanto sim
É pura dança e sexo e glória, e paira para além da história
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Xangô manda chamar Obatalá guia
Mamãe Oxum chora lagrimalegria
Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Obá
Quem é ateu…”
(Milagres do Povo Caetano Veloso)[13]
(Ouçam o Vídeo Clip Milagres do povo - Daniel Mercury. Disponível em http://www.losacordes.com/videoclip/daniela-mercury/milagres-do-povo)
Voltando ao comecinho da nossa história… pois não é que o jornalista Carlos Marques retornou ao Acre após quase 40 anos? Ao final de uma audiência com o então governador Jorge Viana, este perguntou ao jornalista se ele já conhecia o Acre. Marques contou o que já narramos, e para sua surpresa o governador Jorge Viana mostrou ao jornalista o convite que recebera para participar dos festejos dos 50 anos de casamento do Mestre Raimundo Irineu Serra com a Madrinha Peregrina Gomes Serra, dignatária do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal - CICLU Alto Santo, no dia seguinte, 15 de setembro de 2006. E convenceu o jornalista a permanecer mais um dia no Acre.
Marques reencontrou a Madrinha Peregrina Serra, viúva de Irineu Serra, a quem pediu desculpas pelo conteúdo ofensivo que sua reportagem ganhou na edição da revista Manchete, pois esta publicou então várias páginas com a reportagem, onde prevaleceu na edição a versão do bispo de que se tratava de uma seita diabólica. “Foi a primeira entre tantas a desagradar Irineu Serra e seus seguidores”.[14]
- Eu não podia revelar que havia encontrado Deus - disse Carlos Marques.
Na noite de 30 de abril de 2008, na sede do CICLU Alto Santo, foi realizado um evento oficial no qual a Fundação Elias Mansour do Estado do Acre, Fundação Garibaldi Brasil do município de Rio Branco e representantes dos centros que integram os três troncos fundadores das doutrinas ayahuasqueiras (Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal), que solicitaram ao ministro Gilberto Gil, da Cultura, que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) instaure o processo de reconhecimento do uso da ayahuasca em rituais religiosos como patrimônio imaterial da cultura brasileira.
O evento foi prenhe de êxito e um marco histórico do universo ayahuasqueiro brasileiro. No discurso de encerramento desta função religiosa de 30 de abril de 2008, já sem a presença das autoridades constituídas (ministro, governador, secretários de estado e políticos em geral), o orador oficial do CICLU - Alto Santo lembrou da singela história do jornalista Carlos Marques, concluindo que (palavras minhas, registro de memória): o Mestre Irineu, sabedor do passado, presente e futuro do jornalista Carlos Marques, excepcionalmente presenteou o jornalista com uma garrafa de Daime para que este a fizesse chegar as mãos do cantor Gilberto Gil, que a tomasse e conhecesse, para que, passados quase 40 anos, viesse ao Alto Santo na condição de ministro de Estado interceder por tornar a ayahuasca patrimônio imaterial da cultura brasileira.


http://www.cultura.gov.br/site/2008/05/27/o-daime-caetano-gil/